20 junho 2009

Afasta o véu da tua alma...



Sente-se sem ter consciência
Do próprio sentimento.

A paisagem, o ambiente, toca-nos
E, sem permissão, entra dentro de nós.

Queremos ficar neste espaço sem tempo,
queremos voltar, quem sabe, a ambientes passados.

As palavras, as letras, são muito pobres
Para expressar o que sentimos
Quando o braço terno, envolvente e caloroso
Da nossa Grande-Mãe-Natureza nos envolve…

No fundo, o mais difícil é transmitir uma vivência,
Algo que não se consegue agarrar.

Ana Isabel Vieira in Portugal - Terra de Mistérios

13 junho 2009

JUST TASTE

"(...)a queda da laranja provocará o poema?
a laranja voadora é, ou não é, uma laranja imaginada por um louco?
e um louco, saberá o que é uma laranja?
e se a laranja cair? e o poema? e o poema com uma laranja a cair?
e o poema em forma de laranja?
e se eu comer a laranja, estarei a devorar o poema? a ficar louco?
e a palavra laranja existirá sem a laranja?
e a laranja voará sem a palavra laranja?(...)"

(versos de "Prefácio para um livro de poemas", in O Medo, de Al Berto)

03 agosto 2008

Tudo é Morte ao Nosso Redor

"A las cinco de la tarde.
Eran las cinco en punto de la tarde.
Un niño trajo la blanca sábana a las cinco de la tarde.
Una espuerta de cal ya prevenida a las cinco de la tarde.
Lo demás era muerte y sólo muerte a las cinco de la tarde. "

Excerto do poema "A las cinco de la tarde" de Federico Garcia Lorca

22 julho 2008

ODE AO GATO

Os animais foram
imperfeitos,
compridos de rabo,
tristes de cabeça.
Pouco a pouco se foram compondo,
fazendo-se paisagem,
adquirindo pintas, graça, vôo.
O gato,
só o gato
apareceu completo
e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
anda sozinho e sabe o que quer.

O homem
quer ser peixe e pássaro
a serpente quisera ter asas,
o cachorro é um leão desorientado,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato quer ser só gato
e todo gato
é gato do bigode ao rabo,
do pressentimento à ratazana viva,
da noite até os seus olhos de ouro.

Não há unidade como ele,
não tem a lua nem a flor
tal contextura:
é uma coisa só
como o sol ou o topázio,
e a elástica linha
em seu contorno firme e sutil
é como a linha da proa de uma nave.
Os seus olhos amarelos
deixaram uma só ranhura
para lançar as moedas da noite.

Oh pequeno imperador
sem orbe,
conquistador sem pátria
mínimo tigre de salão,
nupcial sultão
do céu das telhas eróticas,
o vento do amor na intempérie
reclamas quando passas
e pousas quatro pés delicados no solo,
cheirando,
desconfiando de todo o terrestre,
porque tudo é imundo
para o imaculado pé do gato.

Oh fera
independente da casa,
arrogante vestígio da noite,
preguiçoso, ginástico e alheio,
profundíssimo gato,
polícia secreta dos quartos,
insígnia de um desaparecido veludo,
certamente não há enigma na tua maneira,
talvez não sejas mistério,
todo o mundo sabe de ti
e pertence ao habitante menos misterioso,
talvez todos acreditem,
todos se acreditem donos,
proprietários,
tios de gatos,
companheiros,
colegas,
díscipulos
ou amigos do seu gato.

Eu não.
Eu não subscrevo.
Eu não conheço o gato.
Tudo sei,
a vida
e seu arquipélago,
o mar
e a cidade incalculável,
a botânica,
o gineceu com os seus extrávios,
o pôr e o mesnos da matemática,
os funis vulcânicos do mundo,
a casaca irreal do crocodilo,
a bondade ignorada do bombeiro,
o atavismo azul do sacerdote,
mas não posso decifrar um gato.
Minha razão resvalou na sua indiferença,
os seus olhos têm números de ouro.

(Navegaciones y Regresos, 1959)
Pablo Neruda

10 junho 2008

...pedra...

Não é a pedra.
O que me fascina
é o que a pedra diz.

A voz cristalizada
o segredo da rocha rumo ao pó.
E escutar a multidão
de empedernidos seres
que a meu pé se vão afeiçoando.

A pedra grávida
a pedra solteira,
a que canta, na solidão,
o destino de ser ilha.

O poeta quer escrever
a voz na pedra.
Mas a vida de suas mãos migra
e levanta voo na palavra.

Uns dizem: na pedra nasceu uma figueira.

Eu digo: na figueira nasceu uma pedra.

Mia Couto

04 maio 2008

O Sol Do Avesso




O seu canto despe o horizonte;

e a deusa inicial revela os seios matinais que nenhum olhar ousou,

e cujos bicos se humedecem do estranho leite das palavras esquecidas.

Digo: o amor, a vida, a morte repetida nos teus braços de ouro e sal;

e uma nuvem de vento e de sombras atravessa o céu da estrofe.

Não deixes que a sua imagem inquiete o poema;

empurra-o para o sol,

para que a excessiva luz o queime,

no incêndio que me impede de ver os primeiros sinais da primavera.


Nuno Júdice in «Rimas e Contas», 2000

19 abril 2008

CREPUSCULAR

Uma túnica negra cobre as nuvens do ocaso. Puxo-a, de um e outro lado do horizonte; e as nuvens ficam nuas, como grandes seios de água, à espera da noite. Então, puxo-as para terra, pelos seus mamilos de água, e colo-as às colinas. Mas as nuvens não gostam da terra; desfazem-se em névoa; e vejo-as escorregarem para o fundo dos vales, onde é noite, e elas se envolvem na túnica negra dos lagos, até voltarem ao céu.

Nuno Júdice

04 abril 2008

AMO-TE


…Amo-te até ao mais ínfimo
E tranquilo desejo do quotidiano,
À luz do Sol e à luz das velas…
…Amo-te ao respirar,

Com os sorrisos e lágrimas
De toda a minha vida! …
Elizabeth Browning

23 março 2008

O Bem e o Mal


Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão em leme da nau
Nesta deriva em que vou.
Me confesso

Possesso
Das virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.
Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
E das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.
Me confesso de ser charco
E luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.
Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso de ser Homem.
De ser anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
De ser o monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!
Miguel Torga in "Aqui Diante de Mim"